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Leia o discurso de Lula em evento de entrega do Prêmio Camões em Portugal

Premiação – a mais importante da literatura em língua portuguesa – foi entregue pelo presidente Lula na cidade de Sintra, em Portugal

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Da Redação

24/04/2023 13:55

lula chico

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O cantor, compositor, dramaturgo e escritor Chico Buarque de Hollanda recebeu, nesta segunda-feira (24), o Prêmio Camões. A premiação – a mais importante da literatura em língua portuguesa – foi entregue pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na cidade de Sintra, em Portugal.


O anúncio do oferecimento do Camões a Chico Buarque foi feito ainda em 2019, mas não foi entregue ao autor após o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) afirmar que só o faria em 2026. Desde então, o Ministério da Cultura de Portugal vinha buscando uma solução diplomática para a entrega da premiação, que deve ser feita pelos presidentes dos dois países. Finalmente, após a volta de Lula à presidência do Brasil, o prêmio foi entregue.


Leia a íntegra do discurso do presidente Lula:


O convite para participar, aqui em Portugal, da cerimônia de entrega do prêmio Camões ao querido Chico Buarque é motivo de grande honra e de imensa alegria.


Hoje, para mim, é uma satisfação corrigir um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos tempos. Digo isso porque esse prêmio deveria ter sido entregue em 2019 e não foi.


Todos nós sabemos por quê. O ataque à cultura, em todas as suas formas, foi uma dimensão importante do projeto que a extrema direita tentou implementar no Brasil.


Se hoje estamos aqui para fazer esse gesto de reparação e celebração da obra do Chico, é porque a democracia venceu no Brasil.


Não podemos esquecer que o obscurantismo e a negação das artes também foram uma marca do totalitarismo e das ditaduras que censuraram o próprio Chico no Brasil e em Portugal. Esse prêmio é uma resposta do talento contra o censura, do engenho contra a força bruta. Um prêmio escolhido por unanimidade por jurados de Portugal, do Brasil, de Angola e Moçambique. Um prêmio da língua portuguesa que nos une mesmo quando barreiras geográficas ou fronteiras nos separam.


Hoje já é outro dia.


Meus caros amigos e amigas,


A obra de Camões marca o início da grande epopeia da língua portuguesa, que hoje floresce nos nove países que a utilizam oficialmente. A obra de nosso Chico Buarque, produzida nesse mesmo idioma, acompanha toda a história recente do Brasil, com especial atenção ao destino político e cultural de nossos países-irmãos.


Chico transformou em patrimônio literário comum os amores de nossos povos, as alegrias de nossos carnavais, as belezas de nossos fados e sambas, as lutas obstinadas de nossas cidadãs e cidadãos pela conquista da liberdade e da democracia.


Em seu cancioneiro, em suas peças de teatro e em seus romances, o autor hoje homenageado nunca deixou de fazer da língua portuguesa instrumento de transmissão de nossas culturas e de nossas lutas.


Na literatura, Chico fez de sua obra uma declaração de amor à língua portuguesa, mesmo quando ousou transformar o idioma húngaro em um dos personagens centrais do romance "Budapeste" – que José Saramago saudou com estas palavras:


"Chico Buarque ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre um arame e chegou ao outro lado. Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este livro".


Na obra de Chico Buarque, o passado, o presente e o futuro de nossas nações sempre estiveram vinculados. Foi assim que ele decidiu revisitar nossa história, na peça Calabar, para nos mostrar, por meio deste personagem luso-brasileiro, quantas vezes em nosso destino se fizeram de traidores, heróis; de heróis, condenados; e da justiça, arbítrio.


Quando Brasil e Portugal atravessavam violentos regimes ditatoriais, foi assim que Chico jogou luz sobre a festa da redemocratização portuguesa, fazendo com que guardássemos, “teimosos e renitentes”, um velho cravo como esperança para nós mesmos. Um cheirinho de alecrim.


E foi assim que Chico também festejou a independência política de nossos irmãos e irmãs africanos.


Minhas caras amigas e amigos,


Chico conseguiu sintetizar as paixões e os desejos de tantas Joanas e Joões, de tantas Teresas e Josés Costas, de tantas Genis e Pedros pedreiros, de tantos guris e mambembes de nossa gente. Transformou o cotidiano em poesia extraordinárias.


Mas a vasta contribuição da obra de Chico Buarque vai além de seus inegáveis aportes à riqueza literária da língua portuguesa e mostra que arte e cultura estão entrelaçados com a política e com nossos ideais de liberdade e democracia.


Ao expressar a beleza de tantos heróis quase anônimos de nossos povos, Chico não nos deixou esquecer a força inquebrantável que vem da expressão popular de nossas culturas únicas, mas compartilhadas. O estreitamento de nosso intercâmbio cultural, que deve ainda ser aprofundado, só poderá enriquecer as tradições e expressões de nossos povos.


Não posso deixar, portanto, de agradecer, aos organizadores deste prêmio literário (a Fundação Biblioteca Nacional do Brasil e a Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas de Portugal) e a todos aqueles que têm contribuído para aproximação de nossas sociedades e para o fortalecimento de nossos valores e aspirações comuns.


Como nosso autor homenageado, tenho a convicção de que é desejo de todos nós que, na celebração das nossas democracias e da nossa valiosa produção cultural, possamos nos tornar, todos, uma imensa unidade alicerçada na nossa rica diversidade.


A unidade na diversidade que Chico Buarque sonhou na bela canção em parceria com Ruy Guerra: um "Fado Tropical", onde o rio Amazonas desagua no Tejo, brotam avencas na Caatinga e alecrins no Canavial, e se misturam guitarras, sanfonas, jasmins, coqueiros, fontes, sardinhas e mandiocas. Tudo num suave azulejo, como somente a sensibilidade desse gênio da língua portuguesa é capaz de criar.


Meus parabéns, querido Chico, por receber, merecidamente, o prestigioso prêmio Camões.


Muito obrigado!

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